sábado, 3 de março de 2018

Crítica de "Trama Fantasma"

Paul Thomas Anderson é aquele típico diretor/roteirista que, com o passar do tempo, tende a virar clássico. Mesmo que não seja tão conhecido pelo público popular atualmente e apesar de possuir uma filmografia relativamente pequena, Paul Thomas Anderson surpreende pela abordagem que deseja fazer nas suas obras: nenhum filme do diretor, mesmo que aparente ser, é óbvio. Isso porque PTA preza por construir roteiros repletos de simbolismos e atmosferas fantásticas que fazem o público pensar. A história principal sempre serve de pano de fundo para um ensaio sobre as fragilidades humanas, as aspirações, o poder, a casualidade. Cada filme de Anderson, melhor ou pior, resgata aquilo de mais nato que o cinema oferece: a capacidade de fazer com que o espectador reflita, utilizando dos diversos recursos cinematográficos para isso. É por isso que já existem tantas obras inesquecíveis dirigidas por ele, tais como "Magnólia", "Sangue Negro", "Boogie Nights", "O Mestre" e "Vício Inerente". "Trama Fantasma", portanto, chega cercado de expectativas pelo próprio peso de seu idealizador. Entretanto, existe um fator crucial que eleva a categoria do filme, mesmo antes da sessão ter início. O grande ator Daniel Day-Lewis (vencedor de 3 Oscars) anunciou que este seria o seu último projeto antes de se aposentar. Repetindo a parceira de sucesso de "Sangue Negro", o ator interpreta Reynolds Woodcock, um londrino dos anos 50 famoso por confeccionar vestidos para as mais variadas celebridades. Sua vida começa a mudar de rumo quando ele conhece Alma (Vicky Krieps), que se torna seu amor e sua inimiga, em uma relação conturbada, mas essencial para os dois.

O filme é um ensaio sobre o poder e a tensão que este provoca. Através de uma construção hábil de personagens contrastantes , Paul Thomas Anderson exibe um conto moderno sobre o jogo de poder nas relações interpessoais e a necessidade do ser humano de se sentir imponente. E, tendo em vista o fato de que os personagens são esféricos (complexos, imprevisíveis), o texto é surpreendente. O roteiro quebra com muitos estereótipos pré-estabelecidos, levando o espectador a uma jornada estranha, porém encantadora. É esse brilhantismo narrativo, tanto na construção dos personagens, quanto na elaboração das situações, que dá ao filme um ritmo ideal. Apesar de transparecer lentidão, "Trama Fantasma" é de fácil digestão por, justamente, ser arrebatador desde seu início. E, como o roteiro trata de verdades universais (poder, relação conjugal, trabalho), é impossível não se sentir compelido a absorver cada analogia da metragem. O filme também pode ser analisado como uma sátira do amor e como uma metáfora que diz respeito aos sacrifícios que uma boa relação demanda. O exagero faz parte da filmografia de Anderson e serve como um importante recurso narrativo para a criação de uma situação absurda, mas crível. O sub-texto consegue fazer um verdadeiro estudo psicológico do ser humano, sendo muito auxiliado por toda a "mise en scéne" e pela habilidade dos atores. Além disso, o longa trata da própria dissociação entre a vida e a obra do artista. Na jornada de Reynolds, a princípio, é visível o apego que ele tem à sua obra em detrimento a sua própria saúde, tanto física quanto mental. Com o decorrer de seu arco, Reynolds parece compreender as sutilezas que a vida oferece e o fato do personagem fazer uma escolha que iria claramente prejudicá-lo, é genial para o fechamento desse entendimento. A alternância entre os momentos de atividade e repouso, carinho e grosseria, amor e ódio dão a tônica desse filme que trata dos ciclos da vida de uma pessoa, sua transitoriedade e a bipolaridade que as próprias relações humanas impõem.

Assim, a direção de Paul Thomas Anderson é algo fantástico e se vende pela completa imersão proporcionada. O uso da câmera pelo diretor é muito inteligente e os planos longos em aliança aos planos sequências dão uma vivacidade maior ao longa. Mesmo que o diretor não se destaque pela inventividade dos ângulos de câmera ou pela movimentação, PTA é excelente por ser "menos". Em seu filme, a câmera é simplesmente mais um elemento que é usado para engrandecer a narrativa. E, juntamente com seu competente montador, o diretor é responsável por uma eficiente metragem, com a duração ideal. Nenhuma cena está no filme por acaso e, o que parecia ser uma mera relação abusiva de amor, é totalmente invertida pelas viradas de roteiro. A fotografia do filme também é eficaz, mas o que impressiona visualmente é o excelente trabalho de figurino e maquiagem que, em aliança com uma paleta de cores mais fria, dão ao longa um tom "vintage", condizente com a a época do filme. Sem falar na trilha sonora que é um absurdo de notas musicais bem encaixadas com a trama, utilizando de instrumentos musicais variados para dar o tom das cenas. "Trama Fantasma", entretanto, não é um filme para todo mundo. Mesmo que o ritmo seja coerente com a proposta do diretor, muitos podem achar o roteiro um pouco sem nexo, devido ao excesso de simbolismos e a dubiedade das ações dos personagens. É um filme que merece investimento emocional, mas, tais fatores, foram responsáveis por dividir as opiniões. Isso, em si, é muito valioso para o próprio filme, pois, uma obra que não termina com o apagar das luzes do cinema, põe em evidência o seu valor artístico e sua capacidade de gerar reflexão no espectador.

Mesmo assim, o filme não se vale apenas das qualidades de seu idealizador: Daniel Day-Lewis consegue roubar o filme para si. A versatilidade do ator é impressionante e o modo como ele toca seus projetos é algo louvável. Aqui, Lewis aposta na dubiedade e na excentricidade de seu personagem, mas nunca existe exagero algum que dê caricaturas demais a Reynolds. Através de pequenos gestos e de expressões faciais diferentes no momento da fala, o ator é capaz de fazer uma composição visual tão impactante quanto a do seu trabalho em "Sangue Negro". E Lewis é tão habilidoso que consegue fazer com que o filme seja ainda mais interessante para o espectador. Ele parece inspirar uma aura de mistério e segurança, ao mesmo tempo, que instiga o público a acompanhar sua jornada. Tudo isso é facilitado pelas ótimas atuações de Vicky Krieps e Lesley Manville, capazes de dar o suporte necessário para o bom funcionamento de Lewis em sua atuação. A grata surpresa que esse filme concede são as suas 6 indicações ao Oscar, pois, apesar de ser o melhor dentre os indicados, está longe de ser parecido com os demais. "Trama Fantasma" poderia ser comparado com "Mãe" em relação à sua preponderância narrativa e por sua análise complexa do comportamento humano. A atmosfera é absolutamente arrebatadora e estonteante, fazendo com que o público sinta-se extasiado ao final do filme. Se "Trama Fantasma" virá a ser um clássico é difícil dizer, mas as situações são tão interessantes que o filme surge como aquele que merece ser visto várias e várias vezes por apresentar diferentes facetas sob diversos olhares. O novo trabalho de Paul Thomas Anderson é imponente, complexo, desafiador e profundo. O roteiro repleto de sub-textos antropológicos em aliança com um ator de alto nível em seu auge resulta em uma realização cinematográfica completamente satisfatória - e surpreendente.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 2 de março de 2018

Crítica de "Me Chame Pelo Seu Nome"

A premiação do Oscar é muito controversa: apesar dos cinéfilos saberem que, na maioria das vezes, os indicados e os vencedores não merecem a estatueta, não vemos a hora de chegar a época da premiação. Isso porque é o momento em que filmes não-comerciais surgem com alguma relevância no território brasileiro, o que permite ao grande público conhecer obras fantásticas, que, mesmo não sendo premiadas, continuam no imaginário popular. Esse é o caso de "Me Chame Pelo Seu Nome": coprodução entre diversos países (inclusive o Brasil), comandada pelo diretor italiano Luca Guadagnino. Baseado no livro de mesmo nome, o filme se passa "em algum lugar na Itália", nos anos 1980, e acompanha o menino Elio (Timothée Chalamet) e suas descobertas pessoais na adolescência. A chegada de Oliver (Armie Hammer) é pretexto para despertar uma paixão arrebatadora no coração do menino e é aí que começa o romance entre os dois. O roteiro, como se percebe, não é muito original, mas jamais se presta a isso. O foco aqui é nas nuances do relacionamento, os olhares perdidos, os confrontos verbais; nunca o encantamento do amor em si. A estrutura narrativa, por ser parecida com "O Segredo de Brokeback Mountain", pode incomodar alguns pela falta de novidade, mas a trama é desenvolvida com tamanha suavidade que o filme ganha contornos próprios ao longo da projeção.

O roteiro de James Ivory é um dos pontos fortes da metragem por ser hábil ao construir uma atmosfera passional. Apesar da própria ambientação e da própria trilha sonora inspirarem um tom onírico, como se fosse uma viagem no tempo para um local remoto, o roteiro é capaz de desenvolver muito bem a dupla de protagonistas, principalmente seus conflitos internos. É perceptível a confusão de Elio no que se refere a sua sexualidade, afinal o menino se sente atraído, a princípio, por ambos os sexos. E a confusão que isso provoca na sua cabeça é de uma suavidade tremenda. Além disso, muitas vezes entendemos a situação de cada personagem simplesmente por causa da linguagem corporal. Entretanto, esse tom contemplativo acerca do ato de se apaixonar incomoda no início do filme, pois faz com que o ritmo seja extremamente defasado. A primeira metade do longa é desnecessariamente arrastada, haja vista que o espectador já é capaz de perceber onde o roteiro quer chegar, mas este não caminha, fazendo com que o ritmo se torne um pouco cansativo. Mesmo assim, a partir da segunda metade do filme, o diretor parece ter total convicção sobre os rumos que sua história deve tomar, engrandecendo demasiadamente a sua obra a partir de então. E é na química entre os protagonistas que a projeção se vale, visto que o roteiro sensível a as atuações viscerais são capazes de prover sutilezas essenciais para a credibilidade do romance. Outro ponto muito forte da obra é a construção de personagem do Mr. Perlman (pai de Elio). Ao longo do filme, o personagem apresenta uma aura com um quê de mistério e o público parece nunca ser capaz de perceber o que o move. Chega no clímax e, então, somos presenteados com um monólogo belíssimo capaz de exemplificar toda a mensagem do filme e encerrar o arco do personagem. Assim como "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" propunha, o amor nunca deve ser esquecido, pois, mesmo que tenha trazido dor, são os momentos de felicidade que servem para engrandecer o eu.

Nesse sentido, a direção consegue ser hábil e sensitiva: o espectador é transportado através das sensações dos personagens. Trata-se de um filme passional, quente, que, com a ajuda do cenário e das próprias referências à cultura greco-romana, discute os conceitos de beleza e de desejo. A câmera de Guadagnino, apesar de estática em grande parte do tempo, é muito minimalista: são os pequenos detalhes que engrandecem a história do filme. Tudo isso é muito ajudado pela excelente trilha sonora, capaz de emocionar devido à profundidade das canções. Aliás, "Me Chame Pelo Seu Nome" é um filme que inspira muito sentimento em todos os seus quesitos e é espetacular na forma como quer passar sua mensagem. Muitos diretores que não fossem hábeis ao contar uma história, focariam na descoberta da homossexualidade como fator crucial da trama. Todavia, aqui vemos isso surgir como pano de fundo para uma extraordinária jornada de aceitação e descoberta do próprio amor. O ambiente gerado pela composição visual e a perfeita sincronia entre os atores faz com que o filme apresente uma leveza tremenda, o que faz ser prazeroso assistir "Me Chame Pelo Seu Nome". Em tempos de crescimento dos discursos de ódio, o filme surge como uma ode à diversidade e se apresenta como uma importante obra de representatividade. O fato de uma premiação como o Oscar prestigiar o filme é importante para dar visibilidade à discussão sobre o preconceito e, como diria Lulu Santos, a obra mostra que "Consideramos justa toda forma de amor".

Por fim, mesmo que o roteiro sensível e a direção bem realizada segurem bem a trama, o destaque principal fica com a atuação dos protagonistas. Timothée Chalamet rouba o filme ao representar um menino inteligente e culto, mas completamente inseguro de suas qualidades. Além disso, o ator consegue dar diferentes facetas ao personagem, o que facilita o apego do público à ele, tendo em vista que todos os seus anseios e dúvidas tornam-se críveis. Ao seu lado, Armie Hammer surge como um contraponto: extremamente seguro de suas decisões, seu personagem surge na vida dos Perlman trazendo vivacidade e inspirando novidade. Mesmo sendo tão diferentes, a química fornecida pelo roteiro é potencializada pela enorme devoção da dupla: repare nos olhares de desejo, nos pequenos gestos físicos que demonstram uma completa devoção. E para completar temos Michael Stuhlbarg em excelente forma, interpretando um pai compreensivo e amoroso, que, mesmo sendo reprimido pela sociedade e por ele mesmo, busca ajudar o filho na jornada de aceitação. Dessa forma, "Me Chame Pelo Seu Nome" trata da descoberta do amor e da aceitação dele, mostrando que, mesmo o sofrimento decorrente desse sentimento é precedido por uma história muito feliz. Luca Guadagnino parece compreender isso nesse filme repleto de paixão, suavidade e desejo.

Nota: 

- João Hippert