segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Crítica de "Três Anúncios Para um Crime"

O cinema western, conhecido no Brasil como faroeste, é um dos marcos de Hollywood. Os filmes que retratavam John Wayne no papel de mocinho ou Clint Eastwood como um anti-herói marcaram época e serviram também para engrandecer a identidade nacional estadunidense, visto que a figura do cowboy é um símbolo daquela nação. Esse gênero cinematográfico, entretanto, caiu em desuso ultimamente, tanto pela saturação de histórias e personagens situados no Velho Oeste, quanto pela aspiração do público a novos gêneros. Nesse ínterim, surpreendentemente, um novo tipo de western surgiu: o western moderno. Agora não existem mais mocinhos e bandidos, tampouco duelos de pistola no meio da cidade, mas sim retratos cotidianos de uma vida dura e pacata do interior estadunidense. Um filme que pode simbolizar perfeitamente essa nova tendência é "Onde os Fracos não Têm Vez": um impactante estudo de personagens que traz o crime como um motor ao seu roteiro. Desse modo, os irmãos Coen (diretores do filme) inauguraram uma forma de fazer cinema deveras autoral, dotada de bastante originalidade e vitalidade narrativa. É nesse contexto que "Três Anúncios para um Crime" ("Three Billboards Outside Ebbing, Missouri") se insere. O filme acompanha Mildred (Frances McDormand), cuja filha foi estrupada e assassinada e que traz à tona ineficácia da polícia local através de três outdoors colocados na saída da cidade. É aí que começa um embate entre Mildred e o chefe Willoughby (Woody Harrelson), em um drama interiorano que poderia, facilmente, ter a assinatura dos irmãos Coen.

O roteiro, assinado por Martin McDonagh, é um dos pontos fortes da obra. Seria muito fácil - e até mesmo petulante - colocar Mildred em um pedestal, dando toda a razão à ela, enquanto a polícia fosse execrada e criticada ao extremo. Todavia, em vez disso, McDonagh é hábil ao fugir de maniqueísmos e promover um verdadeiro estudo psicológico dos personagens. Se por um lado percebemos o desespero de uma mãe em busca de justiça, por outro somos apresentados a ações dessa mesma mãe que transcendem a moralidade. E se a polícia claramente não foi capaz de desempenhar seu papel, também acompanhamos o sofrimento do xerife em solucionar o caso. Desse modo, os personagens de "Três Anúncios Para um Crime" vão se tornando esféricos à medida que não aparece um lado correto. Além disso, um grande acerto do script é o trato das coincidências da vida como algo cômico. O roteirista tem a habilidade de inserir certas gags, com respaldo narrativo, capazes de aliviar o ritmo do filme, assim como proporcionar genuínas risadas. Ademais, um dos grandes pontos abordados pelo longa refere-se às noções de moral e justiça. Até onde uma mãe pode ir para achar o assassino de sua filha? Até que ponto uma polícia com histórico racista pode ser confiável para o cumprimento da lei? Tais questões são sutilmente abordadas ao longo da metragem, fato que potencializa o caráter crítico/satírico da obra.

A direção (também de Martin McDonagh) é extremamente bem executada. O diretor alterna entre planos sequências e planos longos que dão ao ambiente um senso de pacatez extraordinária, pois, embora a cidade pareça ter a tranquilidade do interior, os acontecimentos retratados pelo filme aumentam a tensão envolvida. Assim, o trabalho do diretor de fotografia também deve ser exaltado por conseguir prover uma limpeza visual ímpar, assim como rimas visuais que engrandecem o valor artístico. A trilha sonora também merece destaque, principalmente pelas músicas cantadas apresentadas durante o longa que possuem um encaixe perfeito com o arco da história. Aliás, o grande trunfo do filme reside na construção do arco de seus personagens. Mildred, a princípio durona, vai mostrando suas emoções ao longo do filme e o público começa a se apegar à ela, principalmente ao seu sofrimento. Ao mesmo tempo, o policial Dixon (Sam Rockwell), sob uma primeira perspectiva odioso, apresenta um salto narrativo muito grande, sendo um exemplo da liberdade em detrimento do determinismo, porque, embora criado em um ambiente segregacionista, o policial parece compreender ao longo da história o que um verdadeiro xerife deve fazer, sob o ponto de vista moral. Assim, a participação do chefe Willoughby como uma espécie de referência paterna é de um acerto tremendo.

Todo esse brilhantismo de personagens é bastante facilitado pelo excelente elenco. Frances McDormand apresenta uma atuação crua, cheia de trejeitos, mas que suscita pena e afeição. Mesmo que seja uma personagem típica da atriz, McDormand consegue fugir da caricatura e prover um trabalho crível e competente. Ao mesmo tempo, Woody Harrelson demonstra-se seguro de si e de seus personagem. Apesar de possuir o arco mais simples, seu personagem é um importante motor para as histórias de Mildred e Dixon, sendo responsável por ser um trampolim narrativo muito eficaz. Por fim, Sam Rockwell é a grata surpresa do longa por, principalmente, saber aliar o tom cômico com o dramático através de uma linha tênue, o que dá ao seu personagem um viés multifacetado. Desse modo, o filme consegue construir um senso de absurdo cotidiano que potencializa as curvas dramáticas da trama. Contudo, em alguns momentos, esses pequenos clímax de tensão são seguidos por momentos de monotonia extrema ou, até mesmo, de divagações do enredo que prejudicam o ritmo do filme e o resultado do final da película. Mesmo assim, "Três Anúncios Para um Crime" é um forte estudo de personagens, cujo roteiro analisa os limites entre a moralidade e a justiça, utilizando da imensa qualidade de seu trio protagonista para prover um ótimo filme.

Nota: 

- João Hippert

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