segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Crítica de "Lady Bird: A Hora de Voar"

Normalmente, quando se fala "filme adolescente" pensa-se imediatamente em filmes medíocres, sem profundidade, meramente desenhados para um público amplo, com o intuito de gerar capital. E, infelizmente, com o passar dos últimos anos, esta se tornou uma fórmula de sucesso. Tal fato acarreta um preconceito com o subgênero, mas algumas obras se sobressaem e mostram que o cinema que trata de adolescentes pode ser muito adulto. Se nos anos 1980 o mestre em contar tais histórias era John Hughes, com os clássicos "Gatinhas e Gatões", "Clube dos Cinco" e "Curtindo a Vida Adoidado", que sempre pendiam para um lado mais cômico, atualmente Richard Linklater mostrou-se hábil ao contar o cotidiano do jovem estadunidense em "Boyhood" e "Jovens, Loucos e Mais Rebeldes". Mesmo assim, tais filmes focavam muito na relação entre os adolescentes meninos, muito porque baseavam-se nas experiências próprias dos respectivos diretores. Faltava um filme forte que falasse também das angústias, medos e (por que não?) futilidades da jovem contemporânea. "Lady Bird: É Hora de Voar", uma espécie de autobiografia da diretora Greta Gerwig, surge imediatamente após o excelente filme "Quase 18". Mas, se em "Quase 18" a jornada de Nadine tem seu fechamento no último ano de colégio, aqui a proposta vai além. "Lady Bird" acompanha a menina rebelde, desgostosa com a vida na cidade de Sacramento e eternamente em conflito com a sua mãe Marion (Laurie Metcalf), que aspira a fazer faculdade em algum lugar diferente, simplesmente pelo desejo de ser independente ao considerar a mudança de cidade um pré-requisito para alcançar esse objetivo.

Desde o início da metragem, o roteiro de Greta dá indícios de que vai pensar um pouco fora da caixinha, mesmo que conte com uma história deveras comum. O fato da protagonista não atender por seu nome de batismo, mas sim pelo nome inventado por ela mesma (Lady Bird) revela muito sobre o ponto de partida da personagem. Parece que todas as ações tomadas pela protagonista são reações a um ambiente considerado hostil por ela mesma. É aquela velha sina do jovem que considera as responsabilidades de casa grandes demais para ele e culpa seus pais pela própria frustração. Nesse sentido, o roteiro configura-se como um verdadeiro ensaio sobre o amadurecimento, pois trata da passagem de uma juventude rebelde para um início de vida adulta onde o arrependimento começa a bater. E não o arrependimento de não ter feito algo da maneira correta, mas sim por achar que o excesso de culpa e brigas gerados por uma imaturidade juvenil possam ter causado reais problemas. Essa grandeza da narrativa faz com que o espectador, cada um a seu modo, se identifique com a jornada de Lady Bird por, justamente, compreender que a única forma capaz de se valorizar aquilo que é aprendido em casa seja praticando na rua.

E se essa jornada é tão magnífica e reflexiva é porque a química entre Lady Bird e sua mãe merece aplausos. Embora em constante atrito, fica claro, desde o início da película, o amor que uma sente pela outra. E a cada briga que presenciamos, cada xingamento, uma ferida se abre no nosso coração por nos colocarmos no lugar das personagens. Afinal, quem nunca disse alguma palavra que feriu algum ente querido simplesmente pelo calor da emoção? Mesmo tratando-se de um filme com uma temática aparentemente leve, "Lady Bird" parece compreender a bipolaridade dos sentimentos de um jovem, o que é refletido na variação de humor durante o filme. Embora algumas partes sejam dramáticas, ao tratar da depressão ou do aceitamento da homossexualidade, por exemplo, existe a comicidade na relação entre as amigas e nos diálogos ácidos com uma espécie de humor negro. Além disso, Greta provê um texto extremamente substancial, com questionamentos deveras profundo. Por exemplo, existe um momento em que Lady Bird, no meio de uma discussão com a mãe, pergunta: "Mãe, você gosta de mim?". A princípio, parece uma pergunta boba e até mesmo infantil. A mãe responde: "Não vou discutir o meu amor por você". E é então que o brilhantismo do roteiro aparece na tréplica: "Eu sei que você me ama. Mas você gosta de mim?". Essa pergunta é extremamente reflexiva por tocar no âmago das relações interpessoais, principalmente das familiares. É lógico que pessoas da mesma família se amam, é algo natural, instintivo. Mas gostar é diferente. Gostar requer atenção, paciência e afinidade. Através de um pequeno diálogo, o roteiro consegue acrescentar camadas à discussão adolescente, sem nunca se distanciar da jornada de autoconhecimento da protagonista.

Por sinal, Saoirse Ronan doma o filme com uma atuação primorosa. Desde a maquiagem que a rejuvenesce, passando pelo cabelo pintado, Saoirse parece literalmente voltar no tempo para viver de novo os seus 17/18 anos (ela tem 23). A priori, a personagem parece caricata demais: o público parece ser apresentado a apenas uma jovem inconformada, cujas razões de ser parecem meramente fúteis. Entretanto, com o desenrolar do enredo, Lady Bird vai se mostrando uma personagem multifacetada, dotada de angústias e sonhos, o que facilita o apego do público à ela. Essa transformação é mostrada de forma tão natural pela diretora que parece que estamos descobrindo as qualidades e defeitos da personagem junto com ela. E, se primordialmente julgamos Lady Bird como uma personagem mesquinha, o roteiro habilmente desconstrói isso, demonstrando, com isso, o poder do julgamento antecipado e como isso pode nos impedir de conhecer melhor pessoas maravilhosas. Ademais, Saoirse conta com a ajuda da excelente Laurie Metcalf, cuja atuação representa uma mãe amorosa, que busca o melhor para a sua filha, mas parece simplesmente não se entender com ela. Mesmo que "Lady Bird" foque no amadurecimento de sua protagonista, é inegável a evolução da mãe como personagem, o que eleva, mais uma vez, o padrão narrativo da obra. Todo esse toque cotidiano é facilitado pela direção totalmente segura de Greta Gerwig, que dá ao filme um caráter episódico, visto que é impossível não se identificar com, pelo menos, algum ponto da história. "Lady Bird" trata de uma belíssima jornada de autoconhecimento e maturidade, caracterizando-se como uma crônica sobre a passagem do tempo e sobre a validade das instituições sociais, principalmente a familiar, através de um roteiro belíssimo e de uma direção completamente fluida de Greta Gerwig.

Nota: 

- João Hippert

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