segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Crítica de "It: A Coisa"

Os anos 80 foram um marco na indústria cultural, especialmente na dos Estados Unidos. Em um contexto de final de Guerra Fria, o "American way of life" já havia se espalhado pelo mundo inteiro - possuindo o respaldo de Hollywood. Ao se remeter a essa época, é comum lembrarmos dos clássicos filmes de sessão da tarde, que expressavam a vida nos "high-school" estadunidenses, tais como "Clube dos Cinco" e "Curtindo a Vida Adoidado" e aqueles que todo bom admirador do gênero aventura não deixa passar batido, por exemplo "Os Goonies", "Conta Comigo", "E.T.", dentre muitos outros. A marca dos anos 80, contudo, também foi responsável pela ascensão do excelente escritor de horror Stephen King, responsável por clássicos como "O Iluminado", que misturava elementos culturais da época com a atmosfera terrível proposta pelo autor. Nesse sentido, em 2016, o mundo foi abalado pela estréia da série "Stranger Things", que foi responsável por homenagear os grandes clássicos dos "anos dourados", através de citações explícitas e exercícios de gênero mais sutis. Pode-se dizer que o universo criado por King teve forte influência na concepção do seriado que, por sua vez, teve impacto direto sobre a mais nova adaptação do escritor para o cinema: "It: A Coisa".

O filme acompanha um grupo de jovens em uma pequena cidade do interior dos EUA que precisa lidar com o desaparecimento de pessoas na cidade, fato que é atrelado à presença do Palhaço Dançarino (Pennywise). A estrutura do roteiro escrito pelo trio Chase Palmer, Cary Fukunaga e Gary Dauberman apresenta semelhanças gritantes com "Stranger Things" (que já é um compilado de vários clássicos infantis). O foco aqui está na relação entre os personagens; o mistério é apenas a chave para o desenvolvimento dos conflitos. Talvez, por esse fato, muitas pessoas decepcionaram-se com o tom do filme, por esperarem algo mais amedrontador e horripilante, como aqueles filmes ligados a espíritos ("Annabelle" e afins). Entranto, "It: A Coisa" nunca se propõe a isso; pelo contrário, já que a vitalidade do longa está no excelente desenvolvimento de personagens, muitas vezes propositalmente estereotipado, muitas vezes subversivo. Assim como em "Stranger Things", aqui vê-se uma personagem feminina extremamente forte (Beverly), que é detentora da coragem do grupo e responsável pelo desenrolar das decisões do grupo. Por outro lado, a inserção do personagem negro (Mike) provoca uma crítica velada ao racismo institucionalizado da época, já que o personagem sofre diversos tipos de discriminação por um grupo de "bullers". Estes, por sua vez, são um retrato da enraizada cultura do "bullying" no país, cujo comportamento é direcionado aos considerados mais "frágeis". Através da apresentação de tais arquétipos, o filme é capaz de representar um retrato fiel dos anos 80, mas sem contestar os valores vigentes.

A construção da afetividade do público para com os personagens é muito acentuada pela excelência do elenco mirim: o grupo todo parece estar em sintonia com o universo de King e o senso de amizade, porém desconfiança perante o desconhecido é nítido. Os atores são ajudados pelo primoroso trabalho do roteiro em acrescentar subcamadas a cada personagem, tornando-os únicos e relevantes (mesmo que alguns venham a ser esquecidos com o passar do tempo). Além disso, a caracterização de Pennywise é fantástica. Certamente trata-se de um dos maiores marcos do cinema no ano de 2017, devido ao grande alcance que o filme já teve. O belo trabalho de maquiagem e de figurino aliado aos efeitos visuais reitera o semblante ambíguo do Palhaço, um figura controversa em relação aos sentimentos mostrados, mas sempre aterrorizante. Talvez pelo fato do longa focar muito na relação entre o grupo principal, Pennywise foi deixado como o simples vilão da história, sem o desenvolvimento completo que muitos gostariam. Provavelmente isso será assunto para um próximo filme. Ademais, o excelente design de produção e a competente concepção da fotografia são responsáveis por propiciar uma verdadeira viagem a uma década remota, mas com traços de horror. Apesar da familiaridade com a ambientação, há algo de sinistro que pode ser percebido através do figurino e dos cenários.

Apesar de ser um filme que trabalhe muito bem as relações interpessoais entre os protagonistas e seus diferentes pontos de vista quanto à solução de um problema maior, o diretor Andy Muschietti tem o mérito de proporcionar uma película, muitas vezes, perturbadora. O trabalho de câmera de Muschietti apela, em grande parte do tempo, para o convencional, com um uso excessivo da tática do "jump scare". Mesmo assim, tal tática reforça o retorno aos clássicos proposto pelo filme, mesmo que não deixe de ser uma obra original. O uso de convenções de gênero pelo diretor reforça a sua proposta de viagem a uma época passada, sem apresentar inovações técnicas que claramente se mostrariam avançadas no tempo. A direção, porém, não limita de nenhuma forma o andamento da história, já que o controle da câmera é tamanho que o filme tem um corte perfeito, com a duração necessária. O trabalho de montagem acerta ao conferir um ritmo extremamente acessível ao longa-metragem, mostrando as verdadeiras qualidades que um "blockbuster" precisa ter: diversão dotada de recursos cinematográficos em harmonia. É inevitável pensar no filme como uma espécie de episódio isolado de "Stranger Things", o que não é maléfico. Contudo, a nova adaptação de King ao cinema mostra um jeito especial de tratar o terror, de forma organizada e funcional. "It" é um filme que mescla elementos de aventura e horror de forma coerente, contando com um roteiro redondo e uma direção competente que tornam o filme uma diversão completamente satisfatória.

Nota: 


- João Hippert

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