domingo, 8 de outubro de 2017

Crítica de "Blade Runner 2049"

"Esses momentos se perderão no tempo. Como lágrimas na chuva". A frase mais icônica do clássico "Blade Runner", de 1982, é um daqueles "movie moments" que ficam marcados. É como se fosse uma única sentença representando todo o ideal do filme; todas as suas provocações filosóficas e existenciais. "Blade Runner" é um dos marcos do cinema e, muito provavelmente, o melhor filme de ficção científica já feito. Baseado no magnânimo livro "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?", o longa situa-se em uma futurística Los Angeles no (até então) longínquo ano de 2019. Em um ambiente comandado por uma gigantesca corporação chamada Tyrell, seres denominados "replicantes" começam a ser produzidos como forma de trabalho escravo para as colônias fora da Terra. Uma nave de replicantes, contudo, se desvincula do padrão e retorna à Terra. Cabe então ao caçador de androides (blade runner) Deckard (Harrison Ford) caçá-los e aposentá-los. Apesar de parecer uma trama simples, essa história distópica, responsável pela criação do universo "cyberpunk", coloca em xeque as questões do ser humano sobre o que é ser humano. Até que ponto uma máquina deixa de ser máquina para ser comparada a um ser vivente? Quais são os limites entre a artificialidade e a originalidade? Indagações como essa são transmitidas ao espectador durante toda a metragem - e as respostas parecem nunca chegar. É importante ressaltar, portanto, a influência de "Blade Runner" na cultura pop em geral. Se hoje usa-se a frase "Isso é muito Black Mirror" é porque "Blade Runner" revolucionou o cinema, mostrando que ficções científicas "cabeça" ainda tem espaço no imaginário popular. Em decorrência disso. tivemos "Matrix", "Ela", "RoboCop", "Ex Machina", além da já citada "Black Mirror" e da excelente série "Westworld".

Chegamos então em 2017 com a promessa de retorno ao universo tão complexo que é o dessa distopia. O filme acompanha o policial K (Ryan Gosling) que, depois de aposentar um replicante, descobre coisas que podem mudar o rumo de sua vida - e de sua "espécie". Mais uma vez, a trama principal do filme é simples. O roteiro escrito por Michael Green e Hampton Fancher apresenta elementos clássicos de filmes policiais, onde a investigação é o que comanda o desenrolar do enredo. Mesmo assim, o texto se apresenta de forma bastante lenta, sem se apressar para as resoluções da história. Isso não é uma coisa ruim: apesar de existirem cenas de ação, o foco aqui é desenvolver os personagens introspectivamente, dando diversas camadas a eles. Talvez a jornada de K seja a mais complexa, já que o espectador nunca sabe o que esperar do personagem. Isso porque a atuação (ou a falta dela) de Ryan Gosling contribui muito para o apego ao protagonista. O ator mostra-se versátil ao interpretar um personagem que apresenta um ciclo de autodescoberta, em que, muitas vezes, o replicante mostra-se mais humano do que os humanos do filme. Aliás, isso é o que faz "Blade Runner 2049" ser tão fascinante. O público nunca sabe definir quais personagens são replicantes, além daqueles que são explicitados. E estes são os mais bem escritos, visto que apresentam angústias e sentimentos genuinamente humanos. Seria a memória a única coisa que nos torna, efetivamente, especiais? E se a ciência fosse capaz de criar implantes de memórias tão reais que se confundissem com as próprias memórias, como definir o que é realidade? O roteiro abre muitas possibilidades, mas não concretiza nenhuma. Embora seja um "blockbuster", o filme preza pela reflexão e pelo raciocínio do espectador.

A direção é da sensação do momento Denis Villenueve. Após conceber excelentes obras, tais como "Os Suspeitos", "O Homem Duplicado" e "A Chegada", Villenueve nos presenteia com uma direção primorosa. Os traços de "A Chegada" são evidentes aqui: uma paleta escura e frívola para ambientar um universo fúnebre e deprimido. As cores do filme, aliadas à fotografia, expressam o sentimento daquele mundo, onde a artificialidade toma conta e os replicantes se mostram mais humanizados do que o próprio ser humano. Aliás, o filme aborda o famoso Teste de Turing, pois, depois de uma máquina ter consciência da própria existência, o que a torna diferente de uma entidade viva? Se fôssemos pegar por esse lado, o ser humano desconhece os mistérios que definem a sua existência. O que nos impede de sermos máquinas criadas por outros seres? Essa angústia provocada pela reflexão metafísica é realçada pelo ótimo trabalho de som do filme, que cria um ambiente tenso, profundo e deveras inquietante. Villenueve também acerta ao utilizar, na maior parte do tempo, "takes" abertos que prezam pela imersão do espectador. É interessante notar cada detalhe da cidade, desde os hologramas gigantes e o fusionismo cultural das ruas até as robôs amantes (alguém aí também lembrou de "Ela"?). A habilidade do diretor de posicionar sua câmera e a escolha acertada dos planos corrobora a veracidade do universo criado. Por se passar em um futuro distante, mas plausível; essa familiaridade gerada pelo visual do filme provoca uma angústia ainda maior. Afinal, "Blade Runner 2049" parece não ser apenas uma diversão escapista, mas uma verdadeira viagem no tempo.

O "casting" do filme é outro ponto sensacional. Ryan Gosling realmente rouba o filme na atuação de sua vida (e que fase excelente do ator), mas Harrison Ford, Robin Wright e Jared Leto demonstram um verdadeiro talento, ao incorporarem personagens dúbios, em um universo extremamente desconfiável. Aliás, "Blade Runner 2049" é uma obra que deixa uma carga negativa no espectador; parece que depois de toda a tensão e urgência apresentadas durante o filme, ao final existe um sentimento de êxtase. Talvez esse seja o grande papel de uma boa distopia: apresentar um mundo futurístico com base no que existe hoje. E a crescente falta de empatia pelas pessoas, a mecanização das tarefas humanas e o desejo de conquista, provenientes do nosso mundo pós-moderno, possibilitam o espectador a pensar na credibilidade daquilo que é apresentado. George Orwell, Aldous Huxley, Isaac Asimov, Philip K. Dick estariam orgulhosos. Trata-se de uma continuação digna, capaz de ampliar o universo criado pelo filme de Ridley Scott, ao mesmo tempo que mantém a essência da obra. "Blade Runner 2049" é um filme profundamente reflexivo, que através de ritmo seguro e roteiro circular, questiona o espectador acerca do que é ser humano. E o mais angustiante? Parece que não temos a resposta.

Algumas interpretações são possíveis com o filme. Deixarei abaixo uma que eu fiz durante a sessão, portanto cuidado com os SPOILERS.
"Blade Runner" 2049 mostra que o ser humano vive com base nas suas memórias, porém elas são meras construções de sua mente; extremamente maleáveis, enviesadas e arbitrárias. Enquanto isso, as memórias replicantes são perfeitas, fato que deixa a possibilidade de se interpretar que o replicante é um ser humano evoluído.
Observe como o roteiro "espelhado" entre os dois filmes corrobora essa ideia: no primeiro filme acompanhamos a transformação do Deckard-humano em Deckard-replicante (embora essa condição não seja explícita, existem fortes indícios). Já no segundo, K passa de um replicante para um replicante mais "humanizado", após ter consciência de sua própria existência. Logo, essa jornada narrativa em conjunto dos dois filmes mostra uma descrença na humanidade enquanto espécie atual, mostrando que a inteligência artificial pode vir a ser o próximo passo do processo evolutivo. "More humans than humans". 

Nota: 

- João Hippert

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