sábado, 30 de setembro de 2017

Crítica de "Mãe!"

O cinema, assim como qualquer outro tipo de arte, apresenta como uma de suas funções provocar uma reflexão no espectador, seja pela exibição de relacionamentos amorosos, ficções que discutem valores vigentes, dentre outros diversos arquétipos presentes na sociedade. Contudo, são poucos filmes que conseguem abalar o público de tal forma que a sala finalize a sessão com um silêncio tênue e uma expressão angustiada no rosto; retrato de que a proposta do diretor foi cumprida com perfeição. No ano de 2016, a ficção científica "A Chegada" foi responsável por isso. Em 2017, "Mãe" se apresenta como tal tipo de filme, mesmo que potencialmente mais controverso, polêmico e conturbador. É por isso que trata-se de um filme de difícil ingestão: a violência vai além da imagética, já que perpassa por valores que moldam a nossa sociedade e simplesmente os quebra. Para aqueles que não são capazes de lidar com um filme extremamente crítico, a opção por "Mãe!" deveria ser repensada.

Mas é justamente essa forma de abordagem do filme que o torna primoroso. Escrito e dirigido pelo excelente Darren Aronofsky, o longa acompanha um casal (Jenniefer Lawrence e Javier Bardem) que vive em uma casa isolada no campo, em decorrência do trabalho do homem: ser poeta. A vida do casal passa por mudanças a partir da chegada de visitantes inesperados. Esse é o máximo da história que pode ser contado sem que se estrague a profunda experiência cinematográfica que é "Mãe!". Todavia, existem metáforas essenciais para compreender a proposta da obra, as quais deixarei no final do texto. O roteiro talvez seja o ponto alto do filme por conseguir imprimir camadas e sub-textos a um ambiente relativamente limitado, através do uso de diversas figuras de linguagem. A apresentação do contexto em que o filme está inserido é feita de uma forma perturbadora, porém agridoce. O espectador consegue perceber que aquilo não é totalmente normal, mas os pequenos devaneios e artifícios utilizados pelo roteiro, como a apresentação de determinados personagens ou a elaboração de diálogos, permitem criar uma familiaridade com o filme. Apesar da estranheza inerente, "Mãe!" consegue prender do início ao fim, muito facilitado pelo excelente trabalho de montagem, edição e mixagem de som, que conferem ao longa a fluidez e o dinamismo necessário para o desenrolar do enredo. O trabalho de montagem consegue relacionar diferentes momentos ao longo do filme que criam rimas narrativas que, muitas vezes, têm papel fundamental no desenvolvimento da metáfora principal. Por exemplo: em uma cena fecha-se uma porta e na seguinte abre-se outra. É um simboliso simples (encerra-se um núcleo da história, inicia-se outro), porém pertinente.

Darren Aronofsky (responsável por "Noé", "Cisne Negro", "Réquiem para um Sonho", "O Lutador") apresenta como marca a forma psicodélica de se dirigir, através de cortes rápidos que dão agilidade para seus filmes. No entanto, em "Mãe!" o diretor mostra-se versátil, optando por uma proposta oposta ao seu estilo, mas essencial para o cumprimento do roteiro. A direção de Aronofsky é bem contida, optando por planos longos e planos-detalhe que focam no rosto dos personagens. A câmera sempre opta por viajar pelo cenário em um movimento bem retilíneo; é como se o diretor quisesse que o espectador estivesse realmente assistindo aquilo na "vida real", sendo a câmera apenas um meio para isso, nunca algo a ser notado. Mesmo assim, a forma estática da câmera nunca torna o filme teatral e monótono, haja vista que o senso de espacialidade do diretor mostra-se extremadamente apurado. Apesar do filme se ambientar em uma única casa, sem nenhuma tomada externa, a câmera de Aronofsky consegue realizar "travellings" oportunos, corroborando a excelência de ritmo conseguida pelo trabalho do montador. O diretor também tem o mérito de criar um ambiente de extrema confusão, já que o espectador se vê perdido na maior parte do tempo. A falta de entendimento e a progressão dos fatos causa uma sensação angustiante, pois a cena seguinte é totalmente imprevisível. Aronofsky acerta ao realizar um trabalho competente de apresentação de universo, direção de atores e criação de símbolos e imagens que só farão sentido ao final da projeção.

Apesar das inúmeras qualidades técnicas e criativos artifícios de roteiro, "Mãe!" é um daqueles filmes que depende muito da química entre os protagonistas. Felizmente, vemos dois atores em grande forma: Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Jennifer Lawrence, que há muito já demonstra sua incrível capacidade dramática, confere à sua personagem um toque de inocência e incredibilidade que são essenciais para a construção da narrativa. Aliás, é como se sua personagem fosse os olhos do espectador na tela, pois ela parece ser a única a perceber os absurdos que acontecem e a única com sensatez nas tomadas de decisões. Por outro lado, Javier Bardem interpreta um papel difícil e desafiador, cujos intuitos e preceitos são sempre escondidos por uma máscara que inspira confiança e segurança. As expressões faciais do ator são tão sutis que ele consegue realizar variações dramáticas enormes, mas sempre mantendo a harmonia que seu personagem pede. A dualidade entre a visceralidade de Lawrence e a compassividade de Bardem reforça a perfeita química entre os atores, visto que é a relação entre os dois que move a história. O elenco de apoio também está satisfatório; todos os atores parecem compreender a ousadia de Aronofsky e embarcar no mundo criado por ele.

 As metáforas e interpretações decorrentes do filme são diversas, mas todas têm um peso enorme. É visível a ambição e a ousadia do diretor na idealização de uma obra como essa, já que, simplesmente, existem pessoas que se sentirão extremamente ofendidas. Cabe à cada um fazer sua própria análise, lembrando sempre de que os recursos utilizados no filme são exagerados e propositalmente conturbadores. Muitas vezes a arte precisa chegar fazendo barulho para, na verdade, fazer uma crítica muito mais sutil do que parece. "Mãe!" é um filme inteligente, perturbador, angustiante, quebrador de paradigmas, que se apresenta com um ritmo extremamente fluido, devido à sua montagem competente e ao excelente trabalho de câmera do diretor, além de ser completamente visceral e contar com uma dupla de protagonistas em excelente forma.

SPOILERS:
A metáfora principal:
 A principal leitura do filme depreende que Javier Bardem representa Deus e Jennifer Lawrence a Mãe Natureza. Os primeiros visitantes da casa (que seria a própria Terra) seriam Adão e Eva (note que o homem passa mal e apresenta um corte na costela. Além disso, o casal possui dois filhos, porém um irmão mata o outro - Caim e Abel). As pessoas que chegam à casa representam o próprio progresso da humanidade, com a adoração à Deus ficando cada vez mais forte, a ponto de causar guerras, destruição e prisões. Além disso, as pessoas passam a retirar coisas da casa, mesmo com os avisos da Mãe. Isso pode ser relacionado com a própria degradação que a natureza sofre e como os homens insistem em se comportar desse jeito, mesmo depois de tantos avisos. O filho da Mãe Natureza com Deus seria Jesus, que é morto na mão dos adoradores de Deus, que comem sua carne (clara alusão ao processo de eucaristia da Igreja Católica). Por fim, a Mãe Natureza mostra-se saturada com a situação e destrói a casa (desde o início é perceptível a íntima relação entre a mãe e a casa). Depois disso, na cena final, vemos que Deus recomeça o ciclo, agora com uma outra mulher representando a natureza, o que pode representar uma espécie de vida cíclica na Terra.

Críticas: Ao abordar a exploração humana, o filme critica o desmatamento, a idolatria, as guerras, a fome, a miséira, enfim, todas as mazelas sociais que sempre assolaram a humanidade. Além disso, existe uma clara crítica à própria Igreja Católica e até mesmo à figura de Deus, fato que pode desagradar grande parte do público, já que a Mãe Natureza (original) é sacrificada pelos humanos (inquilinos), cuja presença é estimulada por Deus.

Nota: 

- João Hippert

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