quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Crítica de "O Lobo do Deserto"

O cinema árabe está em crescente expansão, desde o início do milênio. O investimento nas produções está cada vez maior e a qualidade está sendo reconhecida até mesmo pela Academia. Mas, o que o cinema daquela região tem de tão especial? Ora, por ser uma cultura milenar e riquíssima, o cinema do Oriente Médio encontrou um estilo para si: visando retratar a tradição cultural/religiosa da região em oposição com a chegada da modernidade estrangeira através do processo de globalização. "O Lobo do Deserto" (ou "Theeb"), trata um pouco dessa temática sob a forma da jornada de um menino. Theeb é um menino beduíno da época da I Guerra Mundial que precisa partir numa jornada com seu irmão Hussein para servir de guia para um inglês que procura um tesouro romano. A história acompanha esse panorama da Arábia na época; a transição do modo de vida tradicional, das caravelas e camelos à modernidade, sendo representada pela chegada do trem.

O roteiro é escrito por Naji Abu Nowar e Bassel Ghandour. É um trabalho bastante competente, visto que a união entre diversos elementos narrativos tradicionais e metáforas que remetem a uma reconstituição histórica é perfeita. O filme acompanha a história de Theeb, portanto pode-se dizer que é uma espécie de jornada do herói. Alguns arquétipos da jornada são aproveitados, mas o roteiro toma muitas liberdades, principalmente para enaltecer a cultura tradicional árabe. O desenvolvimento do protagonista é pautado na aquisição (e na prática) dos valores que o menino recebe de seu irmão, que serve como uma espécie de mestre na jornada do herói. Theeb, então, passa por diversos conflitos, tanto morais quanto físicos, que são essenciais para sua evolução como personagem. O arco dramático do garoto é perfeito, conseguindo alternar entre os conflitos de forma consciente. Além disso, a principal metáfora do longa se refere à luta entre o antigo com o novo; o arcaico com o tecnológico. Theeb serve para a história como o motor da crítica social, pois como vivia isolado no deserto, não tinha conhecimento das novidades tecnológicas da época. Assim, o protagonista está, também, numa jornada de conhecimento do mundo moderno. E, ao tratar o trem como uma espécie de vilão, o roteiro consegue criar uma identificação com o povo árabe muito grande, visto que o trabalho relacionado a guia de peregrinos está, evidentemente, em extinção. Outro fator que reforça essa ideia é a quantidade de óbitos que a ganância humana promoveu no filme. É visível como todas essas mortes têm ligação estreita com a chegada e o domínio dos estrangeiros.

Dessa forma, pode-se dizer que o filme é arte, no seu mais puro significado: o retrato de um momento histórico sob a visão de alguém que faz parte daquela cultura. E, isso, o diretor Naji Abu Nowar consegue captar muito bem. Nota-se que a direção do filme é totalmente focada no protagonista. Na verdade, não nele, mas em sua visão sobre os acontecimentos. A câmera frequentemente assume o papel de 1° pessoa para demonstrar a visão do menino. Além disso, existem muitos closes nos pés do garoto, demonstrando sua caminhada, entre descobertas e aquisição de valores. O único problema da direção é o fato do longa ser um pouco lento. Mesmo com aproximadamente 90 minutos de duração, o filme consegue se arrastar por alguns momentos. Uma montagem mais rápida e ágil ajudaria em um apego ainda maior com a história. A fotografia, porém, está perfeita. O diretor de fotografia consegue capturar perfeitamente todo aquele ambiente de deserto e usa um artifício muito comum: a insignificância do homem perante a natureza retratada através do contraste entre a vastidão do deserto e a pequenez de Theeb. Outro contraste visual muito importante é entre o trilho do trem e o deserto. Existe uma cena extremamente reflexiva onde a câmera começa mostrando o trilho do trem e se afasta gradativamente até mostrar o trilho sendo engolido pelo deserto. Ou seja, mesmo depois de tudo que o filme mostra de problemático da modernidade, o diretor ainda afirma visualmente que é impossível ganhar da natureza.

A trilha sonora cumpre um papel importante, ainda mais por trazer músicas árabes que ajudam na identificação com o espaço. Além disso, existem algumas canções cantadas pelos personagens, cujas letras remetem ao próprio filme, numa espécie de metalinguagem. É muito interessante essa visão que o filme passa, pois nem todas as ações de Theeb são consideradas éticas. Mas, com essa abordagem, o diretor mostra que muitas vezes, os valores culturais devem transcender aquilo não é inerente ao espaço. Assim, o diretor se mostra inabilitado para fazer qualquer crítica comportamental, pois na visão dele, nenhum valor cultural pode ser considerado "errado". Os atores também estão muito bem. O garoto é interpretado por Jacir Eid Al-Hwietat. Assim como o personagem, o ator mirim se desenvolve com o passar do tempo. Inicialmente vemos um menino um tanto quanto inseguro que se transforma em (literalmente) um lobo, dono de seu próprio destino. Não é uma atuação extraordinária, mas cumpre com a proposta da narrativa. O destaque do elenco é Hassan Mutlag Al-Maraiyeh que provê uma atuação que faz com que o público duvide dos interesses de seu personagem, hora ele é vilão, hora é um ajudante. "Theeb" é um excelente retrato cultural que mostra que o cinema jordânico pode ter muita força. Apresenta a jornada de um herói incomum, usando de metáforas para apresentar o intenso choque cultural, extremamente criticado pela obra, através de direção consciente e roteiro engajado.

Nota: 



- Demolidor

Nenhum comentário:

Postar um comentário