domingo, 9 de fevereiro de 2020

Palpites para o Oscar 2020

Chegou o dia do Oscar! Como todo cinéfilo, também tenho meus palpites para a premiação. Vou levar em conta os prêmios dos sindicatos (PGA, WGA, SAG, DGA, etc), além do próprio histórico do Oscar para definir meus palpites oficiais. Também comentarei um pouco sobre os meus favoritos. Então vamos à lista:

  • Melhor curta em live-action: Brotherhood - É o meu favorito ao lado de "A Sister". Acredito em sua vitória pelo teor da narrativa e pela imensa qualidade fotográfica.
  • Melhor curta em documentário: In the Absense - A forma como a história é conduzida através de entrevistas, áudios oficiais e imagens exclusivas potencializam o valor de produção e auxiliam na divulgação desse desastre tão impressionante. Provavelmente isso vai pesar na escolha da Academia, mas não seria surpresa se o vencedor do Bafta "Learning to Skateboard in a Warzone (If You're a Girl)" ganhasse aqui.
  • Melhor curta animado: Hair Love - Categoria extremamente difícil: as obras são excelentes. "Memorable" e "Sister" são meus favoritos por aliarem muito bem a proposta temática com a proposta visual. Aposto no ótimo "Hair Love" pela distribuição da Sony e pelo tema tratado, que se relaciona com paternidade, ausência e identidade negra.
  • Melhor filme em língua estrangeira: Parasita - Talvez a categoria mais fácil da noite. "Parasita" tem conquistado corações ao redor do mundo e essa é a sua vitória mais certeira.
  • Melhor animação: Toy Story 4 - Assim como a de curta animado, categoria divisiva. Meu preferido foi "Perdi meu Corpo", da Netflix, que conta uma história de maneira fantástica. Contudo, acho que a disputa está entre "Klaus" e "Toy Story 4". Vou com o último devido ao histórico da Academia em premiar filmes da Pixar.
  • Melhor documentário: American Factory - Não vai ser dessa vez que o Brasil vai levar o Oscar com "Democracia em Vertigem". Acho que o peso da divulgação da Netflix e o apoio da família Obama deixam "American Factory" com ampla vantagem. "For Sama" e "Honeyland" correm por fora. Não seria estranho se algum dos dois levasse.
  • Melhores efeitos visuais: Vingadores Ultimato - Outra categoria difícil de prever. "O Rei Leão" criou seus personagens do zero e "1917" tem todos os elementos técnicos reunidos em um primor visual. Ainda aposto no filme da Marvel como forma de reconhecer o filme com a maior bilheteria de todos os tempos.
  • Melhor mixagem de som: 1917 - Filmes de guerra tendem a levar as categorias sonoras. A disputa fica com o excelente trabalho de "Ford vs Ferrari", mas a aclamação em torno de "1917" o favorece.
  • Melhor edição de som: 1917 - Pode ser a forma de dar um prêmio para "Ford vs Ferrari" dividindo os vencedores das categorias sonoras. Ainda assim fico com o filme de Sam Mendes.
  • Melhor edição: Parasita - "Parasita" tem um ritmo perfeito e a montagem auxilia na composição de contrastes visuais importantes para a discussão em torno do filme. "Ford vs Ferrari" também tem boas chances.
  • Melhor fotografia: 1917- Mais um prêmio praticamente definido. A segunda estatueta para o ícone da indústria Roger Deakins.
  • Melhor canção original: (I'm Gonna) Love me Again, de Rocketman - A forma de amenizar a grande esnobada que o filme baseado na vida de Elton John levou como um todo. Vai ser legal ver o cantor ganhar mais uma estatueta.
  • Melhor trilha sonora original: Coringa - Também gostei muito da trilha de "História de um Casamento", mas o trabalho de Hildur Guõnadóttir é tenso, amedrontador e ajuda no ritmo do filme. Ganhou todos os prêmios até aqui e é a grande favorita da categoria.
  • Melhor design de produção: Era Uma Vez Em... Hollywood - A reconstituição perfeita da era de ouro de Hollywood deve pesar na escolha da Academia.
  • Melhor maquiagem/cabelo: O Escândalo - O meu trabalho favorito foi de "Coringa", mas um dos atributos de "O Escândalo" é deixar seus personagens praticamente idênticos àqueles que eles interpretam.
  • Melhor figurino: Adoráveis Mulheres - Filmes de época tendem a dominar essa categoria e, aqui, "Adoráveis Mulheres capricha na composição visual de suas personagens.
  • Melhor roteiro adaptado: Adoráveis Mulheres - A disputa é acirradíssima entre "Jojo Rabbit" e "Adoráveis Mulheres". Acredito que o prêmio fique com este como forma de valorizar o trabalho de Greta Gerwig - completamente esquecida na categoria de direção.
  • Melhor roteiro original: Parasita - Acho que vai ser o grande prêmio de "Parasita" na noite. Uma forma de valorizar a criatividade de Bong Joon Ho. Corre por fora Quentin Tarantino e seu "Era Uma Vez Em... Hollywood": ele já ganhou 2 vezes a categoria de roteiro e não seria surpresa se vencesse pela terceira vez.
  • Melhor direção: Sam Mendes, por 1917 - O conceito por trás de "1917" se dá pelo trabalho de Sam Mendes e seus planos-sequência. Outra vitória praticamente garantida, já que o diretor levou o prêmio do sindicato. Eu daria o prêmio para qualquer um dos outros 4.
  • Melhor ator coadjuvante: Brad Pitt, por Era Uma Vez Em... Hollywood - As categorias de atuação estão fechadas. Os 4 ganharam tudo até aqui. O prêmio de Brad Pitt vai para um boa atuação, entretanto representará sua carreira como um todo. Triste ver Al Pacino e Joe Pesci de fora, mas Pitt merece.
  • Melhor atriz coadjuvante: Laura Dern, por História de um Casamento - Ganhou tudo até aqui e interpreta uma mulher forte e multifacetada de maneira segura e sensível. Também merece o prêmio.
  • Melhor ator: Joaquin Phoenix, por Coringa - Chegou a hora da Academia reconhecer esse excelente ator. A sua atuação em "Coringa" é fenomenal, combinando fisicalidade, emotividade e entrega. É incrível observar como Phoenix acompanha a transformação de Arthur no Joker.
  • Melhor atriz: Renée Zellweger, por Judy: Muito Além do Arco-Íris - O prêmio vai para o reconhecimento do ícone de Judy Garland para além da atuação de Zelleweger, como aconteceu com Rami Malek e "Bohemian Rhapsody" ano passado. Meu voto seria para Lupita por "Nós" (que nem foi indicada) ou para Scarlett em "História de um Casamento".
  • Melhor filme: 1917 - É o voto da razão. Ganhou tudo até aqui. Torço para estar errado, pois "Parasita" e "O Irlandês" merecem muito mais. São obras mais completas, reflexivas e com denso conteúdo narrativo. Mas é muito difícil a Academia premiar na categoria principal um filme em língua estrangeiro ou um original Netflix. Fica aqui a minha torcida para estar errado.
Confira abaixo críticas de alguns dos filmes indicados ao Oscar 2020.
- João Hippert

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Crítica de "Jojo Rabbit"

E se não precisássemos falar sobre a Segunda Guerra Mundial de maneira trágica e dramática? Se, ao invés disso, embarcássemos em uma sátira genuinamente infantil, mas que, em nenhum momento, deixa sua mensagem de lado? São essas experimentações com a linguagem cinematográfica que deixam a sétima arte tão bonita. Seria muito enfadonho e desapontante se apenas tivéssemos super produções que tratassem das grandes batalhas. Claro, elas são importantíssimas, tanto a título de conhecimento, quanto a título de entretenimento. Mas o cinema não deveria se limitar somente a isso. Às vezes é preciso que a arte saia de seu lugar comum. E "Jojo Rabbit" tem isso como seu grande atributo: tratar um tema tabu de forma leve, mas não menos impactante. O grande responsável por esse projeto é Taika Waititi - diretor do excelente "O Que Fazemos nas Sombras?" e do divertido "Thor: Ragnarok". Aqui, Waititi parece demonstrar, de vez, a sua grande capacidade criativa e sua habilidade em contar histórias completamente fora da curva. "O Que Fazemos nas Sombras?", por exemplo, aborda uma família de vampiros vivendo na Nova Zelândia atual, em um estilo documentarista. Já em "Jojo Rabbit", Waititi acompanha a história do menino Jojo (Roman Griffin Davis) - um garoto de 10 anos completamente fascinado pelo nazismo e por Hitler que, inclusive, é seu amigo imaginário (sendo interpretado pelo próprio diretor Taika Waititi). O conflito surge quando o menino descobre que a mãe - interpretada por Scarlett Johansson - esconde uma menina judia no seu porão, fazendo com que um filme aparentemente bobo traga muitas discussões à tona.

Nesse sentido, o roteiro de Waititi em parceria com Christine Leunens brilha ao desenvolver a sátira na sua medida. Relembrando um pouco o humor utilizado por Mel Brooks em obras como "Primavera para Hitler", por exemplo, o filme apresenta de maneira muito acessível aquele universo. Tudo em "Jojo Rabbit" é praticamente colocado de uma forma infantil, nada é muito explicado. Assim, o apego com o protagonista é quase que imediato. Ainda que saibamos tudo o que o seu discurso nazista representa, também entendemos que trata-se de uma criança envolta em um ambiente de completa doutrinação ideológica. Jojo não teria como ser de outro jeito: ele é fruto do berço nazista onde nasceu. Para ele, o fato dos judeus serem tratados como monstros, capetas e afins é natural. Como uma criança de 10 anos poderia refutar isso, já que, inclusive, chega a aprender isso na escola? O primeiro acerto do longa é justamente esse: colocar o público imerso na realidade de Jojo de maneira leve, mas com um sub-texto fortíssimo, principalmente no que tange a crítica ao discurso nazista como um todo. E o segundo acerto é a introdução da menina judia na história. O contraponto existente entre Jojo e a menina é essencial para o desenvolvimento do protagonista e para o nascimento de um sentimento empático nele. A presença da menina, por ser tão natural, mostra para Jojo que os judeus talvez não sejam esses monstros. E o público identificar isso na jornada de um menino já faz valer o ingresso. O roteiro toma o seu tempo preciso para abordar as diversas questões concernentes ao discurso nazista. Mas, como já dito, nada é óbvio: todas as sutilezas estão imersas em um contexto puramente infantil. E, por falar nisso, a atuação de Roman Griffin Davis merece destaque: o garoto tem muito carisma. Ele consegue dizer muito através dos olhares, das reações: nada aqui soa forçado. Além disso, o menino tem um timing cômico muito oportuno, que, sob o comando da direção de Waititi, engrandece muito a experiência cinematográfica.

Desse modo, o filme é muito bem dirigido. É interessante notar como a câmera foca em determinados detalhes de modo a realizar rimas visuais oportunas. A visão dos sapatos da mãe, a figura do coelho, o ato de amarrar os sapatos. Tudo isso é mostrado de maneira aparentemente inocente na metragem, mas tais símbolos são essenciais para a construção de determinados arcos e para a mensagem do filme em si. Assim como o roteiro bem elaborado - tanto na premissa quanto nos diálogos - a direção também é sempre inventiva, dando ao filme uma capacidade de apreciação muito positiva. Ora, todo o design de produção, figurino e fotografia conversam muito: tudo é bem colorido e límpido. Diferentemente de outros filmes situados na Segunda Guerra que apelam para uma coloração mais escura e frívola, "Jojo Rabbit" aposta num tom jovial. Isso remete, mais uma vez, ao interesse em tratar a história sob uma perspectiva infantil. Ainda que Jojo seja influenciado pelo ideal nazista, ele também tem seus anseios de qualquer outra criança. A diferença está justamente nas suas descobertas e no que ele decide fazer com elas. Essa parte do filme me lembrou bastante "O Menino do Pijama Listrado": filmes baseados em diálogos para criar empatia entre os personagens. E, falando também sobre simpatia, deve-se enaltecer a personagem de Scarlet Johansson. 2019 foi realmente o ano da atriz. Aqui, ela desenvolve uma mãe super carinhosa, despojada e divertida que, aos poucos, vai demonstrando sua personalidade ao público. A grande sacada por trás da personagem está no fato de que descobrimos suas percepções acerca do nazismo através de Jojo. Nada é exposto gratuitamente. Dessa forma, o conflito interno da personagem se mostra deveras complexo: ela precisa demonstrar apoiar o nazismo para o próprio filho de 10 anos a fim de garantir a segurança de ambos. E a forma como Scarlett leva isso impressiona pela naturalidade demonstrada. Um atuação doce, amável, mas ao mesmo tempo resignada e forte.

Por fim, também devo ressaltar acertos de Taika quanto aos alívios cômicos. Além dos diálogos em si, o filme consegue criar momentos divertidos através da introdução de músicas de grandes artistas (Beatles, David Bowie) trazuidas para o alemão, além de tomadas em câmera lenta oportunas. "Jojo Rabbit" é importante para mostrar que certos assuntos não precisam ser tratados somente de maneira séria: o humor - quando bem construído - também é capaz de suscitar muitas reflexões. Talvez o único aspecto que tenha me incomodado no filme seja o seu ritmo um tanto quanto problemático. A transição entre o humor e o drama podem ter afetado na fluidez narrativa do longa, que aparenta ser maior do que realmente é. Mas, mesmo assim, é uma obra criativa que merece reconhecimento. "Jojo Rabbit" consegue trazer um olhar diferente à temática. Ao conceber uma comédia essencialmente infantil, Taika Waititi brilha no desenvolvimento de seus personagens, ao mesmo tempo que faz críticas necessárias, trabalhando, da melhor maneira possível, o potencial de uma ótima sátira histórica.

Nota: 

- João Hippert

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Crítica de "Joias Brutas"

Realmente é impressionante como as coisas podem mudar de uma hora para a outra na indústria cinematográfica. Adam Sandler estrelando um filme sério e sendo o dono do filme? Ainda que o ator tenha desempenhado um bom papel em "Embriagado de Amor", com PTA, Sandler tem a sua marca registrada nas comédias, que, por sinal, detêm um grande apelo do público em geral. Não é a toa que estamos falando de um dos atores mais conhecidos do mundo e seus conteúdos são sempre muito acessados. Na Netflix, por exemplo, os filmes que contam com a participação de Sandler possuem um alcance gigantesco. E espero que isso se estenda a essa nova produção, recém-chegada ao catálogo do streaming. Esnobado em praticamente todas as premiações de peso de Hollywood, "Joias Brutas" (do título original "Uncut Gems"), acompanha Howard (Adam Sandler) - dono de uma joalheria que vê a iminência de diversas coisas: um leilão importante se aproximando, a pressão pelo pagamento de uma dívida, um casamento se desfazendo. Aliás, é muito difícil explicitar uma sinopse básica para esse filme. O roteiro dos irmãos Safdie em parceria com Ronald Bronstein foca muito mais na apresentação do cotidiano de Howard ao invés de suas características em si. Aqui, não há espaço para diálogos expositivos: desde o começo somos impelidos a acompanhar a jornada de um homem repleto de obrigações a serem cumpridas, mas com um tempo não tão suficiente e vícios que o atrapalham.

À medida que o roteiro desenvolve as situações e os conflitos conseguimos entender melhor o personagem. Desse modo, a história se desenvolve de maneira frenética desde o início, sendo as situações casuísticas responsáveis pelo desenvolvimento de um personagem quebrado. Howard não parece ter certeza de nada: do casamento, do leilão, da joia em questão. E, assim, o filme nos convida a uma jornada tensa na vida de uma pessoa repleta de incertezas e totalmente mal resolvida com suas escolhas. Isso nos traz angústia, tensão e ansiedade, pois, apesar de Howard não parecer a melhor pessoa do mundo, o apego do público é inevitável. E é aí que chegamos na parte de enaltecer a excelente atuação de Adam Sandler. É impressionante a habilidade com que o ator carrega o filme nas costas. Toda a preocupação e a urgência são muito perceptíveis nos olhares do ator, no seu jeito de caminhar, no modo de atender o telefone. O ator também consegue trazer certos símbolos visuais para a construção do personagem muito oportunos. A presença constante do óculos, o uso de jóias no corpo, a presença de um aparelho no dente. Todas essas incorporações dão ao personagem um traço bem único, mas nada forçado. Sandler está completamente entregue ao papel e, desde o início, o público simplesmente esquece a persona por trás do ator. Em nenhum momento ele dá espaço para caricaturas ou alívios cômicos: a opção é sempre pela atenção. É uma pena que essa grande atuação não tenha sido reconhecido pela Academia, pois é, de fato, muito impressionante.

Como já dito, "Joias Brutas" é um filme que trata do cotidiano de um personagem teoricamente comum, mas exaltando a tensão e a urgência nas suas decisões. Assim, deve-se reconhecer o excelente trabalho de montagem que o filme realiza. A duração do longa é precisa, as transições são bem efetuadas e combinam muito com o trabalho de direção. A câmera dos irmãos Safdie também é um ponto alto da metragem: assim como o roteiro não se preocupa em respirar para apresentar os personagens, a câmera também não o faz. Tudo aqui é dinâmico: a movimentação dos atores, a movimentação da câmera, os cortes oportunos. Muitas vezes estamos situados dentro de um lugar específico, tal como a loja de Howard, por exemplo, mas nunca parecemos parados. A câmera faz questão de passear pelo cenário, o que, aliado a uma montagem ágil, potencializa o sentimento de urgência tão oportuno ao longa. Além disso, nas cenas que acompanhamos Howard na rua, por exemplo, a câmera brilha ao se tornar quase um personagem tentando acompanhar o protagonista. É como se estivéssemos tentando acompanhar o ritmo de alguém que tenha muita pressa. Desse modo, vale mais uma vez ressaltar a grande presença de Adam Sandler em tais cenas, demonstrando um comprometimento também com a fisicalidade e com os movimentos do personagem. Ainda falando da parte técnica, "Joias Brutas" conta com um trabalho de fotografia bem decente, que é mais visto nas cenas em um show noturno. Ali o filme tem uma de suas poucas pausas: ele foca em parte do show do The Weeknd e a câmera acompanha as diferentes partes da boate. Assim, o contraste entre o preto, o branco e o neon estabelecem quadros belíssimos, que demonstram um belo trabalho de fotografia.

 Além disso, vale ressaltar a trilha sonora que acompanha a toada do filme, sendo bem encaixada nos momentos oportunos. Ademais, o elenco de apoio é bem eficiente: todos os coadjuvantes conseguem contracenar de maneira satisfatória com Adam Sandler. Talvez o destaque vá para a participação de Kevin Garnett, ex-jogador de basquete da NBA que interpreta ele mesmo no filme. Toda a trama em torno do atleta é deveras interessante e serve como pano de fundo para desenvolver um lado da personalidade do protagonista Howard. Aliás, o que torna o filme tão incomum é justamente sua proposta narrativa: não estamos acompanhando uma única história linear. Acompanhamos a vida de Howard que é composta por diversas tramas secundárias. Nesse ínterim, é válido notar como cada coisa influencia no comportamento de Howard e em sua evolução como personagem. Trata-se de uma escolha ousada por parte do roteiro, mas que parece acertada. O roteiro brilha na apresentação de um personagem quebrado, mas carismático. E todas as reviravoltas que o script promove são acertadas e bem pontuadas, o que auxilia na manutenção da atenção do espectador. Tratam-se de 2 horas e 15 minutos na frente de uma obra muito especial: ágil, complexa e instigante. "Joias Brutas" não parece se deter em um gênero específico, mas foca na tensão e na urgência para prover uma experiência arrebatadora, contando com uma incrível e absoluta atuação de Adam Sandler.

Nota: 

- João Hippert

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Crítica de "1917"

Filmes de guerra sempre permearam a história do cinema mundial. Tendo em vista que o cinema é uma arte tipicamente do século XX, este comportamento é totalmente justificável. As duas grandes guerras mundiais formaram toda uma concepção de sociedade, influenciando, de diversas maneiras, na composição dos costumes e modo de viver ao redor do globo. Assim, o cinema sempre busca retratar tal realidade a fim de que não esqueçamos isso. Curiosamente, no entanto, a Primeira Guerra Mundial não costuma ser tão retratada nas telonas. Por isso, a ideia por trás de 1917 é deveras interessante. O filme acompanha a missão de dois soldados britânicos na entrega de uma carta para um pelotão que está adiante deles. E é basicamente essa premissa. A ideia de um filme que retrate uma missão ordinária de maneira extraordinária me agrada muito, principalmente pela ideologia por trás disso. Um pensamento de que a guerra não só foi feita de grandes batalhas e líderes famosos, mas também por homens comuns e missões consideradas secundárias. Dar espaço para esse tipo de história é interessante não só do ponto de vista histórico, mas também na diversificação dentro do gênero. Não é à toa que "Dunkirk" é um dos meus filmes recentes de guerra favoritos: ele trata as batalhas de soldados comuns de maneira grandiosa, promovendo uma imersão gigantesca. Porém, talvez o ponto que desbalanceie "1917" seja exatamente esse: imersão. A primeira metade do filme se mostra um pouco arrastada e os diálogos deveras expositivo. Ainda que seja importante situar o espectador no tempo e no espaço, certos momentos soam artificiais e retiram um pouco a veracidade daqueles acontecimentos.

Além disso, o roteiro de Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns peca no desenvolvimento dos personagens, de modo a impedir que sentimos maior afeição por eles. Tratando-se de um longa que se resume, basicamente, a dois personagens em uma missão, é essencial que o público crie apego desde o início. Porém, isso é prejudicado não só pelos diálogos previsíveis, mas também pela falta de uma maior preocupação com uma introdução da vida antecessora dos soldados. Com isso, a imersão também é defasada à medida que o visual vai, gradativamente, se tornando mais relevante do que os arcos dos personagens. E, aqui, reside o grande ponto do filme. A proposta de Sam Mendes foi de contar essa história em um grande plano-sequência, isto é, filmar de modo a não transparecer nenhum tipo de corte aparente. A ideia é fantástica, justamente para relatar, de maneira fiel, o andamento de uma missão em um ambiente inóspito de combate. Contudo, o que "1917" dá a entender é a ideia da direção antes do roteiro. Explico: Sam Mendes parece ter concebido uma direção sem cortes antes de elaborar o roteiro em si. Desse modo, a direção chega até a atrapalhar determinados momentos da metragem, já que certas conveniências parecem acontecer a todo o tempo. E, como a direção dá uma noção de continuidade, tais cenas parecem forçadas demais. Além disso, o filme perde o potencial dramático que a história acarreta. Certas dores não são sentidas o suficiente, assim como a tensão não é total. Isso prejudica o contexto final da metragem por impedir uma visceralidade e verossimilhança maior.

Por outro lado, "1917" também tem seus grandes méritos. Não é um filme ruim, longe disso. É uma experiência visual incrível. O trabalho do diretor Sam Mendes em aliança ao diretor de fotografia Roger Deakins resulta em uma composição visual impressionante. Tudo aqui é épico: as trincheiras, as filas de soldados, as cidades em destruição. Nesse sentido, o filme brilha ao criar uma ambientação estupenda que nos transporta de maneira muito crível àquele momento histórico. "1917" é um filme que, devido aos seus méritos técnicos, deixará alguns momentos na memória do espectador. A aliança da fotografia, da edição e mixagem de som, além da direção, fazem com que determinadas cenas de ação sejam potencializadas e causem uma empolgação maior. Nesse ínterim, o filme melhora de maneira absurda em sua parte final: as cenas são grandiosas e o peso finalmente é sentido. Ainda que o inicio seja mais lento e sem alma, o final consegue salvar "1917" de ser um desastre. E a escolha de Sam Mendes pelo uso de planos-sequência merece ser enaltecida devido à dificuldade técnica para se fazer isso. O diretor já se mostrou excelente pelos trabalhos em "Beleza "Americana" e "007: Operação Skyfall". Entretanto, em "1917" ele parece ter atingido o seu ápice. Aqui, Mendes é capaz de passear sua câmera nos diferentes cenários sem cortes aparentes, mesmo nas cenas de ação. Isso demonstra uma direção muito segura e competente: é claramente o ponto alto do longa. Porém, ao mesmo tempo, isso joga um pouco contra o filme à medida que as escolhas visuais sobrepõem-se às escolhas narrativas. Isto é: me vi mais impelido a assistir alguma cena grandiosa envolvendo efeitos práticos perfeitos e fotografia incrível do que acompanhar a história em si. É uma questão de sobreposição clara da forma ao conteúdo, o que, a meu ver, não combina com o peso dramático que a história carrega e acaba por prejudicar o resultado final da metragem.

Desse modo, "1917" é um filme que vai dividir opiniões. Talvez o grande ponto do filme seja a sua capacidade de se envolver com a história. Nesse quesito, o roteiro me frustou. Não foi um filme que engrenou de cara. Isso acabou por influenciar negativamente nas atuações dos dois protagonistas: George MacKay e Dean-Charles Chapman. Não que os atores sejam ruins ou tenham interpretado mal: ambos fizeram bons papéis. Todavia, a falta de carisma de ambos também prejudicou no envolvimento com a missão de seus personagens. Nesse caso, a culpa não pode ser concedida somente a eles, mas também ao roteiro que, como já dito, falha ao não desenvolver, de maneira eficiente, as relações entre eles, assim como o peso de suas decisões. Mesmo assim, o filme brilha em seu ato final: entregando algo grandioso, enérgico e emocionante. Uma pena que a obra inteira não tenha seguido essa linha. "1917" é um filme primoroso tecnicamente, mas falha em questões de desenvolvimento de personagens e coincidências narrativas. Um típico caso em que a técnica sobrepuja (e muito) a narrativa, o que prejudica o envolvimento do espectador com a metragem, ainda que a proposta do diretor Sam Mendes mereça elogios.

Nota: 


- João Hippert


terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Crítica de "O Farol"

O gênero do horror, quando bem trabalhado, é capaz de despertar no espectador sentimentos que poucos conseguem. Clássicos como "O Iluminado", por exemplo, tratam de temas sérios á volta de uma história genuinamente aterrorizante. Dito isso, como grande fã de filmes que prezem por tal densidade narrativa em um ambiente de terror, "O Farol" se mostra um grande deleite, reforçando, mais uma vez, a qualidade das obras cinematográficas feitas em 2019. Dirigido por Robert Eggers - idealizador de "A Bruxa"- o filme acompanha dois homens responsáveis por um farol. E a premissa é basicamente essa. Não existem elementos adicionais: a história gira em torno da relação entre os personagens. Desse modo, "The Lighthouse" não é um filme comum, assim como não é palatável por qualquer um. O ritmo lento, a escolha pela fotografia em preto e branco, as constantes alucinações dos personagens: tudo isso afasta parte do público na apreciação da obra. Mesmo assim, tais elementos são vitais para a proposta de Eggers e funcionam muito bem na criação de um ambiente hostil, inóspito e enlouquecedor, fazendo com que o próprio farol se torne personagem central da trama. Nesse ínterim, as semelhanças com "O Iluminado" ficam ainda mais aparentes á medida que ambas obras realizam um estudo acerca da loucura humana mediante o confinamento em ambientes restritos. Assim como o Hotel Overlook foi motor para a transformação de Jack Torrance, o Farol parece influenciar, cada vez mais, a índole dos personagens, fazendo com que seja difícil diferenciar o que é real do que é imaginário.

Desse modo, o roteiro de Eggers brilha ao expor elementos clássicos de histórias de marinheiros para mostrar os efeitos da solidão em personalidades complexas. Ainda que não saibamos as reais motivações dos personagens, o roteiro é inteligente em prezar pela dúvida, em um jogo mental que se mostra deveras justo. Não sabemos, até o momento do clímax, de que lado a loucura está. Os elementos inseridos na estrutura física do farol auxiliam na manutenção dessa dubiedade. Aliás, o grande mérito do longa está na inserção de um ambiente completamente imersivo. A opção por um ritmo lento e vagaroso desde o início da película é importante para a criação desse contexto. Ainda que Thomas Howard (Robert Pattinson) seja o protagonista desde o princípio, as suas motivações são sempre uma dúvida para o público. Além disso, o roteiro se afasta da exposição gratuita: Eggers se preocupa muito mais em mostrar do que falar. Os diálogos presentes na metragem estão restritos aos momentos de jantar, quando conhecemos um pouco mais sobre os personagens. Vale ressaltar que tais momentos retratam a força do álcool, que parece uma verdadeira válvula de escape para os faroleiros. Além disso, é interessante notar a preocupação do script em sugerir diversos acontecimentos relacionados ao passado de ambos, o que deixa o julgamento moral do público muito mais confuso. As posturas são conflitantes, contrastantes, porém nunca óbvias. Tudo isso é maximizado devido ao primoroso trabalho de atuação da dupla. Tratando-se de um longa situado em um ambiente isolado, é ideal que as interpretações sejam críveis a ponto de segurarem a atenção o tempo todo. Resumindo: "O Farol" é um filme que depende excessivamente de seu elenco para que sua proposta seja bem sucedida. Nesse sentido, Robert Pattinson surpreende com uma atuação visceral, uma entrega absoluta. Personagens que passam por grandes transformações psicológicas tendem a exigir mais do ator, já que a jornada deve se afastar ao máximo da caricatura. Mesmo assim, o antigo protagonista da saga "Crepúsculo" desenvolve seu personagem com maestria, conseguindo transmitir a dubiedade necessária, assim como as diversas etapas de seu enlouquecimento. Por outro lado, William Dafoe se configura como o ápice da metragem, ao prover uma atuação segura e completamente envolvente. Ainda que o filme não aposte tanto nos diálogos entre os personagens, quando acontecem eles são extremamente marcantes, auxiliando em demasia o andamento da história.

Por sinal, a experiência de assistir "O Farol" se mostra bem incomum á medida que a direção de Eggers se preocupa muito mais na imersão do que no "storytelling". A câmera do diretor se mostra bem estática, focada nas expressões dos atores, assim como na representação dos ambientes fechados.    Além disso, Eggers conta com um trabalho de sonorização competente, que auxilia na construção dos momentos de tensão ao longo do filme. "O Farol" é um filme indigesto, difícil de ser assistido, justamente por exigir muito da parte sensorial do espectador. A narrativa dúbia em torno dos protagonistas em aliança com um trabalho de som metódico resultam em cenas surpreendentes, que ocasionam um verdadeiro "frio na espinha". Assim como havia feito em "A Bruxa", Eggers se afasta dos previsíveis "jump scare" para criar o terror através da atmosfera do filme. Outro fator que auxilia na construção do terror e na incerteza quanto ao que é real e o que é imaginado é a belíssima fotografia. A utilização do preto e branco aqui não é um mero capricho estético, mas também serve para situar o enredo em determinado tempo histórico (séc. XIX) e provocar o espectador. Comumente, os pesadelos são associados ao preto em branco: um momento em que não existe vida e a angústia do espectador pela volta da cor aumenta. Tratando-se de "O Farol", no entanto, o alivio de acordar e ver as cores de novo não chega. Assim, somos impelidos a nos sentir desconfortáveis o tempo todo e, á medida que a loucura aumenta, a fotografia auxilia na deturpação daquilo que é real. Tal tensão e confusão provocadas no espectador também são realçadas pela corriqueira presença de elementos incomuns, tais como sereias e pássaros. Aliás, toda a forma como Eggers filma as cenas com pássaros parece ser uma clara homenagem ao mestre do gênero - Alfred Hitchcock - emulando, com isso, filmes que também prezavam pela imersão.

Por fim, pode-se dizer que o filme busca analisar os impactos da solidão e do isolamento na saúde mental do indivíduo, potencializando as transformações dos personagens através do gênero do horror. É interessante notar que nenhum dos personagens termina o filme da mesma forma que começa: seus arcos são completamente influenciados pela presença do farol. E a luz do farol - um dos grandes mistérios do filme - parece simbolizar um momento de consciência, em que os personagens poderiam esquecer do ambiente opressor que os rodeia. Vivendo em um mundo preto e branco, a luz seria uma espécie de esperança, uma forma de não enlouquecer com a solidão arrebatadora. Mesmo assim, as formas para se obter a presença junto á luz parecem subverter seu próprio conceito, tendo em vista que a loucura potencializada parece levar a esse caminho. Por outro lado, a busca incessante pela luz pode se relacionar com o próprio espectador que, depois de imergido na história, apenas busca um respiro. E, no final das contas, o mérito de "O Farol" é claro: ainda que apresente metáforas interessantes, a experiência cinematográfica é grandiosa devido ao alto grau sensorial da narrativa, numa obra peculiar e absolutamente imersiva.


Nota:

-   João Hippert

sábado, 11 de janeiro de 2020

Crítica de "Adoráveis Mulheres"

A magia da arte nos permite refletir sobre a universalidade de certas histórias. Por que será que determinadas obras artísticas permanecem no imaginário popular por tanto tempo através das gerações? O que faz um clássico efetivamente se tornar um clássico? Talvez a grande resposta esteja na aplicabilidade que tais histórias possuem na vida de cada um. É por isso que revisitá-las, desde que com um trabalho bem feito, pode ser um grande deleite: justamente por apresentar uma visão única acerca de uma história universal. Dito isso, chegamos em "Adoráveis Mulheres". Baseado no romance de Louisa May Alcott, o filme acompanha quatro irmãs vivendo o final de sua adolescência e início da fase adulta durante o período da Guerra Civil Estadunidense. O filme foca nas relações entre as irmãs, assim como seus sonhos, suas desavenças e seus amores. O fio condutor de todo enredo é a personagem Jo (Saoirse Ronan), que representa a própria autora de "Adoráveis Mulheres", o que permite reflexões metalinguísticas oportunas. A primeira delas é muito interessante e aplicável ao próprio filme. Ora, até o século XIX a literatura era basicamente composta pelos grandes clássicos, pelas grandes aventuras, pelos grandes mistérios. As obras que tratavam do cotidiano e da vida do homem comum eram bem raras. Tratando do mundo feminino, mais escassas ainda. Nesse ínterim, a discussão presente no filme à respeito do talento de Jo dialoga, justamente, com a necessidade de histórias que tratem do cotidiano. A literatura, assim como o cinema, não pode viver só de grandes clássicos. Assim, Jo não deve almejar se tornar a nova Shakespeare, mas sim encontrar a sua própria voz enquanto escritora e tratar dos assuntos que domina. Nesse caso, ela usa do próprio talento para escrever sobre a relação com as irmãs. É nítido como o filme exalta esse comportamento, como uma clara forma de homenagear a autora do romance tão aclamado. "As pessoas amam o que as outras pessoas fazem com paixão".

Aliás, amor é algo bem presente no filme. É muito interessante perceber que Greta Gerwig chega ao seu segundo trabalho como diretora em um filme tão diferente da sua estreia, mas ao mesmo tempo tão semelhante. Explico: apesar de "Lady Bird" ser um drama adolescente contemporâneo e "Adoráveis Mulheres" se configurar como um retrato de época, alguns temas são revividos. É justamente o olhar feminino da diretora acerca do amadurecimento de suas personagens. O que é interessante notar, no entanto, é o contraste das épocas que resulta em uma abordagem histórica deveras interessante. Aqui, percebemos os valores arraigados em uma sociedade do século XIX. Greta acerta ao inserir críticas sutis naqueles comportamentos, sem nunca condenar os personagens, tendo em vista que eles são fruto do seu tempo. A diretoria, no entanto, parece projetar seu comentário social na protagonista, o que se mostra bastante acertado. Repetindo, de certo modo, o papel feito em "Lady Bird", Saoirse Ronan realiza um trabalho ainda mais complexo. Ao mesmo tempo em que ela busca o seu sonho de ser escritora e tenta, de qualquer forma, se desvencilhar da obrigação de ter um marido, ela precisa lidar com os seus sentimentos de forma conflitante. Assim, a atriz consegue demonstrar a dubiedade de sua personagem de forma brilhante, o que deixa Jo ainda mais carismática ao público. Nesse sentido, a direção de Greta parece estar projetando um pouco da própria cineasta naquela personagem, de modo que a câmera parece sempre buscar suas reações, seus olhares, seus gestos. E, como já dito, a característica mais presente no filme é amor. O grande acerto de Greta é tratar todas as suas personagens de maneira extremamente carinhosa, mas sem esbarrar na idealização. Desde o início da metragem somos impelidos a nos sentir confortáveis com aquela família. A química entre as irmãs é excelente, assim como a grande presença de espírito da mãe (interpretada pela ótima Laura Dern). Tudo isso é facilitado por um ótimo design de produção que cria uma casa completamente aconchegante, definindo muito bem os espaços através das movimentações de câmera. Isso faz com que o espectador fique mais à vontade naquele ambiente fechado.

Além disso, a câmera de Greta parece ser uma verdadeira "quinta irmã". Ainda que o foco em Jo seja evidente, a diretora  parece se preocupar em acompanhar as conversas das irmãs de perto, mas sem interferir. Não existe nada mirabolante: o foco aqui é a interação entre as personagens. Aliada a isso está a estupenda trilha sonora. Presente durante todo o longa, a música é importante para ditar o ritmo da história. Além de potencializar os momentos emotivos, a trilha sonora marca muito bem as transições entre as cenas. Aliás, um dos grandes desafios do filme se estabeleceu a partir da escolha de Greta em dividir a história em duas linhas do tempo. Apesar disso, a escolha pareceu acertada por favorecer o desenvolvimento das personagens. Ao passo que acompanhamos as irmãs no início da adolescência e no início da vida adulta, somos apresentados às decisões feitas no passado que influenciam no presente. É interessante notar como o roteiro preza por desenvolver suas personagens de maneira gradual, mesmo que não linear. Desse modo, as jornadas se tornam mais completas e, até mesmo, surpreendentes. Todavia, esse êxito também se deve à excelente montagem, capaz de encaixar as cenas nos momentos certos. É interessante notar como em "Adoráveis Mulheres" a montagem e a fotografia parecem se unir para transmitir um único sentimento. Por exemplo: existe uma cena em que Jo desce da escada e recebe determinada reação da mãe. O ambiente é arejado, iluminado, os passos são sonoros. A casa parece ter vida. Subitamente, somos transportados para o mesmo lugar. Porém, agora a iluminação é parca e os passos quase inaudíveis. Greta Gerwig mostra, em uma cena como essas, a grande diretora que é. Afinal, muitas vezes, o simples fato de utilizar os elementos técnicos para contar a história já é muito valioso para a narrativa como um todo. Nesse caso, a transição mostra como os momentos são efêmeros e como um mesmo lugar pode ser palco de alegrias e tristezas. Falando um pouco sobre a outra parte do elenco, Emma Watson, Florence Pugh e Eliza Scanlen apresentam boas atuações. O destaque fica com Florence Pugh na interpretação de Amy, já que esta é a irmã mais conflituosa com a protagonista Jo. Mas, assim como todas as outras, ela também é retratada sob um olhar carinhoso, o que nos impede de desgostar da personagem. Ainda que elas sejam completamente diferentes uma da outra, é perceptível o amor que nutrem entre si.

Por fim, é válido ressaltar a discussão que "Adoráveis Mulheres" traz à respeito do casamento. A protagonista, representando seu espírito contestador, participa de um excelente diálogo que assemelha a instituição do casamento a um acordo comercial, principalmente naquela época. Como as mulheres eram limitadas ao que o marido ordenava, seus ganhos estavam intimamente ligados a isso. Não havia autonomia, porque os postos de trabalho feminino eram praticamente inexistentes. Assim, Jo contesta o próprio casamento por amor, nessa sua postura ultra-realista. E, no fim das contas, "Adoráveis Mulheres" é um filme que se mostra relevante pelo seu comentário social sutil, ainda que as bases de um filme de época ainda estejam presentes. Greta Gerwig acerta em dar um frescor à obra, ainda que respeite muito o material original. Sendo este apenas o seu segundo filme na direção, é empolgante presenciar a ascensão de uma cineasta que tem tanto para falar. E não seria exagero dizer que a parceria com Saoirse Ronan tem se mostrado eficiente. O único problema de "Adoráveis Mulheres" reside no seu último ato, que se mostra mais arrastado do que o necessário. É como se o carinho de Greta pela obra a tivesse traído e ela não soubesse terminar a obra. Acho que 10 minutos a menos tornariam o filme perfeito. Mesmo assim, "Adoráveis Mulheres" é uma doce obra, capaz de emular sentimentos fortes não só através de um roteiro bem escrito, mas também pelo uso perfeito da montagem e da fotografia.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Top 10: Filmes 2019

Mais um ano chega ao fim e, com isso, as tradicionais listas de melhores do ano. Antes de mais nada, é preciso dizer: 2019 foi um excelente ano para o cinema. Nunca achei tão difícil reunir as 10 melhores obras do ano e colocá-las em ordem, o que demonstra a grande qualidade das películas, além de uma diversidade incrível. Filmes comerciais, independentes, nacionais... Todos tiveram seu espaço devido à relevância das obras. Vale lembrar que a lista leva em conta apenas os filmes lançados comercialmente no Brasil no ano de 2019. Assim, existem alguns filmes de 2018 na lista, mas que chegaram aos cinemas brasileiros somente no início desse ano. Para começar, devo fazer algumas menções honrosas - filmes que gostei de assistir em 2019, mas não o suficiente para estarem entre os 10. Durante a temporada do Oscar, tivemos o lançamento do estupendo Guerra Fria - drama polonês que trata com muita sensibilidade os encontros e desencontros do amor. Além disso, A Favorita foi um destaque devido à sua fluidez narrativa e suas inovações técnicas e Vice se mostrou um importante documento histórico. Se a Rua Beale Falasse foi um filme que passou batido por aqui, mas merece destaque devido às suas sutilezas. Outros filmes que merecem ser citados são Vidro e Creed 2. Mesmo não sendo à altura de seus predecessores, são continuações justas e um entretenimento digno. Também gostaria de exaltar algumas obras que merecem destaque pela leveza. Filmes que podem não ser tão geniais, mas que dão uma sensação muito boa ao serem assistidos. São eles Turma da Mônica: Laços, Toy Story 4 e Yesterday. Cada um à sua maneira consegue emocionar, divertir e entreter - dependendo do seu envolvimento emocional com cada história. Além deles, Rocketman representou a carreira de Elton John de forma bastante autoral, conseguindo incluir elementos fantásticos em uma cinebiografia, de modo a enriquecer a obra. No que tange os lançamentos da Netflix, Democracia em Vertigem demonstrou força histórica ao retratar um dos lados da moeda no impeachment de 2016. Breaking Bad: El Camino foi um digno fim de arco para um dos melhores personagens da série tão consagrada. Por fim, Dois Papas e História de Casamento são filmes que colocam de vez a Netflix no patamar dos grandes estúdios de cinema, investindo em histórias intimistas e elencos fabulosos. Não seria estranho observar ambas as obras no Oscar 2020. Por fim, a última menção honrosa fica com o excelente Entre Facas e Segredos - suspense ágil que conta com boas reviravoltas e uma montagem de ponta. Sem mais delongas, eis os dez melhores:


  • Parasita"Parasita" é, de fato, muito bom. Contando com um sub-texto social marcante, o longa sul-coreano é uma experiência altamente imersiva, tensa, reflexiva, configurando-se como um dos melhores filmes do ano.
  • O Irlandês - "O Irlandês" é definitivamente uma combinação de elementos que não teria como dar errado. Um grande estúdio com capacidade de investimento, um grande diretor com liberdade criativa, um roteiro funcional e minucioso e um grande elenco. "O Irlandês" demonstra a força do streaming ao prover uma película intimista, envolvente e, acima de tudo, tecnicamente perfeita.
  • Bacurau Bacurau é "uma canção singela, brasileira", que inspira resistência, tanto na sua história quanto na sua proposta temática, utilizando-se de um roteiro repleto de sub-textos sociopolíticos relevantes para a conjuntura atual e de uma direção que remonta aos clássicos do Cinema Novo, de modo a se configurar como uma das mais relevantes experiências cinematográficas nacionais dos últimos anos.
    • Era Uma Vez em.. Hollywood "Era Uma Vez em... Hollywood" pode não ser o filme mais memorável de Tarantino, mas com certeza é um dos mais reflexivos. O cinema respira.
    • Coringa - Contando com uma levada autoral totalmente bem-vinda, "Coringa" é um profundo estudo de um personagem esférico, com um sub-texto social marcante e que ganha destaque por uma das maiores atuações dos últimos anos. Joaquin Phoenix é assustadoramente fantástico.
    • Assunto de Família"Assunto de Família" é um poderoso estudo social que ganha força com o afeto transmitido, por meio de uma família que, mesmo sendo desfuncional, também mostra-se deveras amorosa e completamente aconchegante.
    • Nós - Contando com referências a "O Iluminado" e "Tubarão", "Nós" é um filme de terror rico em sub-textos, que conta com uma atuação fortíssima de Lupita Nyong'o e fortalece, ainda mais, a imagem de Jordan Peele enquanto grande cineasta.
    • Vingadores: Ultimato -  "Vingadores: Ultimato" é o filme de uma geração, marcado por um roteiro capaz de emocionar e empolgar, por um elenco totalmente empenhado e uma direção que entende onde quer chegar, fazendo isso com maestria.
    • A Vida Invisível - "A Vida Invisível" surge como uma obra que valoriza o amor na sua mais pura forma, utilizando de sutilezas do roteiro para fazer uma análise profunda acerca das raízes do patriarcalismo brasileiro.
    • Homem-Aranha no AranhaversoMesmo que aposte no tom lúdico inerente das histórias em quadrinho, "Homem-Aranha no Aranhaverso" aborda questões existenciais sobre relações familiares e exibe, com técnica e visual arrebatadores, a necessidade da representatividade étnica, por meio de um protagonista totalmente carismático e de uma experiência imersiva.




    - João Hippert